Benzedeiras: os artistas e suas obras
Beleza dos ofícios
o benzimento segundo a arte naïf
Augusto Luitgards, PhD
A proposta de reunir numa mesma oportunidade duas tradições ancestrais ricas de referências pode até ter sido operacionalmente complexa mas, superadas as eventuais dificuldades, o resultado não poderia ser mais exitoso do que o visto nesta exposição de arte naïf, cuja única demanda da curadoria, quando do comissionamento das obras junto aos artistas, foi o realce das práticas das benzedeiras e benzedores.
Nomeamos como antecedentes remotos da arte naïf as inscrições rupestres realizadas pelos nossos antepassados nas cavernas, durante a pré-história. Na atualidade, entendemos que a emergência do artista Henri Rousseau no final do século XIX abriu portas e compreensões para um distanciamento, ainda que involuntário, de uma arte regulada por canônes acadêmicos segregadores e por ditames apolíneos. Arte, portanto, essencialmente comprometida com a razão e a lógica de seu tempo. Subversiva já em seu nascedouro, a longeva e atemporal arte naïf é marcada, profundamente, por uma identidade dionisíaca, pois nela são identificáveis construtos tais como as emoções, os instintos, a irreverência, a espontaneidade e, certamente, o rompimento com os cânones estéticos incensados à época.
Estamos convictos de que os processos de fruição das obras naïfs estão longe da exaustão, pois novos e renovados aportes teóricos de aréas tais como a Antropologia, a Sociologia e as Artes Plásticas têm revelado quão produtivas e relevantes podem ser as pesquisas a elas dedicadas. É inegável, por exemplo, a presença de citações de elementos considerados naïfs em obras modernas e contemporâneas. No contexto desta exposição, a arte naïf registra, algumas vezes até etnograficamente, as práticas medianeiras dos benzedores e benzedeiras junto às entidades ditas sagradas.
É impossível situarmos, historicamente, a prática de benzimento mas, certamente, ela aflorou em momentos de padecimentos do corpo e da alma. Tradição tão diversa quanto nossa cultura, no Brasil ela é caracterizada pelo amálgama de tradições religiosas europeias, africanas e indígenas voltadas para a mitigação e cura dos achaques humanos. Tradicionalmente, a capacidade de intercessão dos benzedores e benzedeiras é vista como a concessão de um dom divino mas, isso não é impeditivo para que essa prática, transmitida oralmente, seja compartilhada ao longo de várias gerações da mesma família e que haja, neste estágio da Sociedade do Conhecimento, cursos específicos para benzedores e benzedeiras. É de nosso conhecimento a existência de coletivos que se reúnem para intercâmbio de conhecimento e empoderamento mútuo. Na Alta Modernidade, há situações em que o benzimento que, historicamente, é presencial, passa ser ministrado remotamente, com o auxílio das novas tecnologias.
Com orações católicas tradicionais e invocações autorais sussurradas, um pequeno ramo de planta considerada terapêutica e gestos reiterativos em forma de cruz, esses homens e mulheres ministram o benzimento com vistas à cura almejada por aqueles que, não raro, estão desesperançados, não conseguem êxito no âmbito da medicina tradicional ou não têm acesso a ela. O benzimento, não raro, é a última esperança do nosso povo, marcado pela fé e pela confiança em respostas divinas.
Nesta outrora chamada Terra de Santa Cruz e da qual já se disse que, em se plantando, tudo dá, espirradeira, sabugueiro, mastruz, mussambê, sálvia, manjericão, arruda, pinhão roxo, vassourinha, hortelã, fedegoso e carrapateira são indispensáveis à liturgia do benzimento para aliviar o sofrimento daqueles que padecem de espinhela caída, quebranto, mau olhado, herpes, encosto, carne quebrada, erisipela, depressão e ansiedade. O alcance dos propósitos terapêuticos é assumido quando essas plantas medicinais murcham nas mãos dos benzedores ou benzedeiras. Esse emprego de plantas nos rituais de cura revela aspectos de uma etnobotânica popular afetiva e muito peculiar.
Nesta exposição, artistas representativos da melhor arte naïf brasileira comungam conosco a confluência de duas tradições populares – a arte naïf e o benzimento terapêutico – que revela um país culturalmente rico, destaca as implicações de sermos um país multiétnico, salienta a generosidade de nossa gente, quebra paradigmas usualmente engessados por ortodoxias que insistem em nos vender duvidosas certezas e nos inunda com a beleza singela dessas artes, que se reinventam continuamente e nos extasiam. Todo esse vasto repertório é colocado a nossa disposição graças a esses inspirados e exímios artífices, que nos oferecem em comunhão as refinadas belezas dos ofícios que desempenham. Esta exposição tem até elementos iniciáticos e é marcada por tanta beleza, que até poderia ser contemplada de joelhos, merece nosso mais reverente olhar e nossas persignações. E por que não um sussurrado amém?
Os artistas e suas obras estão sendo postados pouco a pouco nessa plataforma, enquanto isso visite a exposição no Museu Municipal de Socorro-SP até o 14 de novembro 2020.






















































































Estas duas fotos são homenagens a Dona Maria Pastora de Santa Brígida na Bahia por Andrea Goldschmidt e a Dona Geralda de Montes Claros em Minas Gerais por Sid Cirilo.


Artistas que participam do projeto
Alex Freire, Alice Masiero, Andrea Goldschmidt, Andrea Teixeira, André Cunha, André Romitelli, Angela Rosa, Arivânio Alves, Bia Telles, Bruno Boulay, Carmézia, Capucine, Carminha, Cecília Menezes, Célia Godim, Célia Santiago, César Lima, Clara de Ro, Con Silva, Cora Azêdo, Cuca Jorge, Dani Vitório, Dona Ditinha, Doni 7, Dulce Martins, Edna Alves, Eliana Martins, Elieth Gripp, Elsa Farias, Ge Guevara, Gerson Lima, Kelly Cardoso, Helena Rodrigues, Helena Vasconcellos, Ivone Mendes, Jair Lemos, Joilson Pontes, Jonas Silva, Lidia Leite, Luis Lopreto, Lu Maia, Maria Carlini, Marinilda Boulay, Nalme Mendonça, Neo Brasil, Nilson, Olinda Evangelistas, Parisina, Patricia Helney, Regina Puccinelli, Rimaro, Rita Isabel Vaz, Romário Batista, Rosa Mc, Rosângela Politano, Roseli Fontaniello, Rosemara Bozer, Ruiy Moura, Samuel Vasconcellos, Sandra Scavassa, Shila Joaquim, Sid Cirilo, Sidney Nofal, Tânia de Maia Pedrosa, Thiê, Tilíca (Olga Celestina Durand) , Valter Polettini, Vânia Cardoso, Willi de Carvalho, Wladmir Amoroso, Zé (José Benedito Ferreira), assim como Vânia Furlan, Beto Furlan e as bordadeiras do projeto Univers IDADE da Unicamp de Campinas: Beatriz Franco de Oliveira Serra (Péu), Célia Caliento Barone (Célia), Cristina Maria Jundurian (Cris), Heloisa Maria Capossoli Barros (Helô), Jennie Rodrigues (Jennie), Ray Couto (Ray), Rosemeire Aparecida Corat (Rosemeire Corat), Zelia Marília Barbosa Lima (Zelia Lima), Iná Furlan e Júlia Toledo (Mãe e Filha), Rosimeire Bortoletto Brandão (Rosi), Zelia Marília Barbosa Lima (Zelia Lima).